Da lama ao caos. Com uma escala no lucro

Mar de lama. Essa expressão foi muito usada em meados da década retrasada para representar a corrupção no Brasil. Na era Fernando Collor, poucos anos após o fim de mais um regime militar em nossa história, com a liberdade de imprensa em ação, o Brasil pôde testemunhar seu próprio Watergate, tendo Pedro Collor, irmão do então presidente da república, assumido o papel de Garganta Profunda, detalhando os esquemas que culminaram no impeachment.

Duas décadas e meia depois, o mar de lama reaparece no cotidiano tupiniquim, mas dessa vez de forma literal – e pela segunda vez, mostrando que nada foi aprendido com a experiência de Mariana. Mais que uma tragédia humana e ecológica, Brumadinho é a prova do quanto o Brasil tenta resolver tudo na base do empirismo e do conformismo.

Enquanto se bate palmas a países estrangeiros por sua suposta melhor organização, aqui a população se conforma com o pior – e sem explicação do porquê disso. Fosse assim, qual o motivo de se exaltar a condição de uma das maiores mineradoras do planeta e não se exigir uma contrapartida a altura de sua importância a Vale para a população brasileira?

Antes que defensores do capitalismo liberal (ou anárquico) se pronunciem, não cabe dizer que a empresa não tem responsabilidade junto aos brasileiros. Primeiramente porque lucra trilhões explorando a maior riqueza de um país: sua terra. A seguir, porque é uma empresa privada “Pero no mucho”, já que a Litel, sua maior acionista é majoritariamente controlada por fundos de pensão de empresas estatais, no caso dos empregados do Banco do Brasil (Previ), da Caixa Econômica Federal (Funcef), da Petrobras (Petros) e da Cesp (Funcesp). A seguir, temos o BNDESpar, empresa de investimentos do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social), como segundo maior acionista da Vale. Ou seja: outra entidade ligada ao governo. Esses entes somados, tem cerca de 29% das ações.

Depois, enfim, dois entes 100% privados: o Bradespar, ligado ao Bradesco, e o fundo internacional BlackRock que juntos somam mais 11% aproximadamente.

Agora vem o cheque mate: o Governo Federal conta com as chamadas Golden Shares, ou seja, poder de veto para mudanças da sede da companhia, na denominação social, no objeto social relativo à exploração de jazidas minerais, na liquidação da empresa e na venda ou encerramento das atividades de exploração de minério de ferro.

Desta forma, fica uma pergunta: por que o governo não agiu anteriormente e não age agora, ao menos para mostrar a população brasileira que seus representantes eleitos estão lutando para que a lucratividade da empresa não seja potencializada por vidas inocentes? A resposta mais óbvia, claro, seria pelas estreitas relações comerciais entre empresas e organizadores de campanhas. Mas vamos deixar isso de lado nesse momento.

O que se espera é uma posição firme dos nossos governantes ante o caos formado pelo acidente. Cobrar responsabilidade e o pagamento de indenizações que, embora não aliviem a dor pela perda de entes queridos, ao menos sejam suficiente para um recomeço digno a famílias que, em muitos casos, perderam seu arrimo e as suas bases.

Voltando ao Mar de Lama, que seja a última vez. Até porque os lucros dos acionistas não podem ser maiores do que a dignidade humana.

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