Brasil, o pais do “Sabe com quem você está falando?”

Vamos hoje usar esse espaço para cometer uma inconfidência que, usualmente não é feita em editoriais: fazer uma autocrítica da imprensa. Mas essa será na forma analítica, relembrando um caso que mostra o quão provinciano é o Brasil, mesmo 515 anos depois de sua “fundação”.

Na semana passada, Ivo Nascimento de Campos Pitanguy, o Ivinho, filho do renomado cirurgião Ivo Pitanguy, atropelou e matou o operário José Fernando Ferreira da Silva. Ele estava bêbado e, portanto, estamos falando de um homicídio doloso, com o agravante de que o motorista contava com uma “gorda capivara”, como se diz no jargão jornalístico-policial, com dezenas de multas de trânsito em seu currículo, 14 delas por embriaguez ao volante. Ou seja, prisão em flagrante, sem direito a fiança.

Entretanto, estamos no país do “sabe com quem você está falando”, a maldita frase que desmente a cláusula pétrea da Constituição que estabelece de forma (teoricamente) inconteste que todos são iguais perante a lei. A constatação, detalhada pelo antropólogo Roberto DaMatta em “Carnavais, Malandros e Heróis para uma Sociologia do Dilema Brasileiro”, mostra que, infelizmente, alguns detêm mais poder que outros – e destroem a noção de sociedade. Isso posto, o criminoso, o irresponsável cidadão que sequer deveria ser permitido a se aproximar do volante de um veículo, mas – por mais incrível que pareça – tinha a habilitação em ordem – deixou a prisão poucos dias depois. A mágica veio pelo Ministério Público que desqualificou o indiciamento de homicídio doloso para culposo. Ou seja, no entendimento do MP, o que aconteceu na Gávea, Rio de Janeiro, mesmo com tudo que depunha contra o criminoso, foi um “acidente”.

Um taxista que estava no local e prestou socorro ao operário relatou que Ivinho, após falhar na tentativa de fugir do local, bradou em alto e bom som: “Tu sabe quem eu sou?” por diversas vezes, enquanto o operário agonizava rumo à morte no quente asfalto do nobre bairro carioca. José, apenas, mais um José, virou um número, uma estatística que causará dor apenas em seus familiares e amigos, enquanto no momento em que você estiver lendo este texto, Ivinho estará em sua casa, talvez planejando o que fazer nesta noite e, quiçá, estará novamente embriagado dirigindo em alguma rua do Rio de Janeiro – ainda que esteja proibido de frequentar locais onde se vendem bebidas alcoolicas.

Essa história mostra o quão desigual ainda é o Brasil. Não é fora da realidade dizer que caso fosse o inverso, com José atropelando e matando Ivinho, não seria feita uma comoção nacional, com matérias e mais matérias relatando a grande dor sofrida por Ivo Pitanguy e sua família que, certamente, pediriam justiça em rede nacional e seriam prontamente atendidos por algum desembargador de plantão que lançaria o operário na pior das prisões em tempo recorde. O pior de tudo é que essa situação hipotética seria bem possível.

Voltando ao que foi dito no primeiro parágrafo, cabe uma reflexão. Em um dos maiores portais de notícias do Brasil, o destaque sobre o caso era: “Filho do cirurgião plástico Ivo Pitanguy está internado em estado grave no Rio”. O mais importante da história era o operário morto ou a internação de um criminoso? Ah, sim. Não sabemos com quem estamos falando…

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