A cegueira seletiva e o latim

“Homo sum humani a me nihil alienum puto”. Seguindo a moda implantada por Michel Temer, introduzimos este texto com um dito em latim. Apesar da última palavra parecer ofensiva para alguns, o significado é singelo: “eu sou um ser humano, então nada humano é estranho para mim”.

No conturbado processo de impeachment enfrentado pela presidente Dilma, tivemos um novo capítulo esta semana, com a ordem do Supremo Tribunal Federal para interromper o processo por conta de “pequenas espertezas” arquitetadas por Eduardo Cunha e os opositores afim de deixá-la mais fraca no processo.

Embora possa parecer que o presidente da Câmara quer ser o mártir de uma “libertação” do país (como muitos têm classificado o processo), não há como negar, por mais cegos que o analista esteja, que, usando um jargão popular, “há cheiro de feijão queimado” neste processo. Ora, estamos falando de uma pessoa que tenta, de forma desesperada, salvar sua própria pele. Considerando que Cunha não é um primor de articulação, nada mais humano do que entregar aos leões a cabeça de um alvo desejado. Vale lembrar que, a rigor, a oposição (personificada na figura de Aécio Neves) nunca aceitou a derrota, chegando ao ponto de contratar (e pagar por) uma auditoria que constatou que não houve falhas no processo eleitoral. Rancor e mágoa? “Homo sum humani a me nihil alienum puto”.

Paralelo a isso, movimentos “pseudossociais” também tentam “dar uma força” para a queda da presidente. Ironicamente, mesmo se declarando apartidários, se personificam em figuras que, embora aplaudidas, mostram profunda ignorância política ao fechar os olhos quando veem a Constituição ser rasgada – já que isso facilitaria na obtenção de seus intuitos. Dura lex, sed lex (A lei é dura, mas é a lei)? Nada disso. Vale mais seguir divulgando o que quer que seja, independentemente de ser verdade ou não, até porque isso vende camisas e lucrativos badulaques como afinal, está escrito na obra de Maquiavel, “Quum finis est licitus etiam media sunt licita” (Os fins justificam os meios).

Com isso, entregamos o futuro do país às mãos de Cunhas, Bolsononaros e Felicianos da vida que, dia após dia, pouco mostram de útil na sua função de legislar e governar. Muito pelo contrário, estamos em um clima soturno mais puxado para lotérico, em que não se pode vislumbrar muito o que possa acontecer. “Alea iacta est” (A sorte está lançada), como disse Júlio César bem antes de Michel Temer, atravessar o Rubicão (o rio proibido, de acordo com o direito romano) com sua carta.

Tivemos vários exemplos de que, infelizmente, vivemos em um país sem regras (ou quase isso). Quem não lembra, por exemplo, da notória frase “estupra, mas não mata” (“rapinis, sed non occides” em tradução livre), de Paulo Maluf que, praticamente, pregava a tolerância a uma das mais graves violências em prol de outra? Ou seja, não é de hoje que, por um motivo ou outro, esquece-se a existência das leis quando em benefício próprio. Isso vale também para o dia a dia. Não faltam exemplos do pagamento do famoso “cafezinho” para se conseguir uma vantagem no serviço público ou para evitar uma multa. Ou ainda de se ignorar o sinal vermelho para ganhar uns segundinhos na viagem?

Não se discute aqui a competência do atual governo. Muito pelo contrário, há severas críticas às várias falhas que tem apresentado, mas sim o respeito às leis que, afinal de contas, existem para ser cumpridas. Qualquer coisa fora disso, é exemplo da nefasta Lei de Gérson: “brasileiro quer levar vantagem em tudo” – essa sem tradução para o latim porque, infelizmente, é coisa nossa.

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